Escuridão, Silêncio, Tristeza

Uma lágrima não cai de seu olho
desfocado.
Uma gota de sangue.


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Um tiro não quebra o silêncio
morto
nem a noite morre quando nasce o dia.


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Uma cabeça separada do corpo
sangra.
Um sorriso de dor. O tempo para.


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No barulho do trânsito, o som de um piano. Lento, grave, fúnebre.
Um gato dorme na escada de uma igreja. Antiga. Fria. Escura.
Vozes femininas através da parede. Inquietas, tensas, tristes.


Alheias à escuridão do mundo, crianças correm na praça.


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Lento como o som de um carro 
freando,
um assassinato. Súbito, outro.


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A lágrima se mistura ao sangue,
O cheiro do medo ao barulho da respiração.


Faz frio. Escurece.


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A ilusão se desfaz.
Ele está morto.


(Morto, mil vezes morto, sangrando no banco de seu carro destruído em uma estrada deserta e escura. Mil vezes seu relógio se quebra e pára, azul. As luzes acesas, inúteis monumentos a esse corpo inerte, inúteis e perigosas, mil vezes revelam a morte ao olhar de uma criança).


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Despertou de seu sonho
ensolarado.
Ajoelhou-se. Fingiu rezar.


O luar entrava pelos vidros
coloridos.


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O olhar de horror do círculo que se formava ao redor do corpo
vermelho:
Um murmúrio grave, feito vidro quebrado, se espalha e todos desaparecem.


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Mas os olhos, milhares, espreitam
escondidos.
A hora da morte. O silêncio.


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Ela vem, lenta, em seu vestido negro,
esvoaçante.
Olha esse corpo sangrando e sorri.


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A chuva murmura lamentos.
Anoitece.
Uma flor cai sobre o corpo.


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A voz soou estranha e cessou.
As pernas e os braços sequer se moviam.
A visão escureceu, a respiração parou.


Sentiu-se leve. Anoiteceu.


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Olho para o teu túmulo em silêncio.
O som de um piano, longe, me consola.


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Chovia uma noite longa.
Pedaços de flores pelo chão.
Jamais amanheceu.


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Tomando uma cachaça no balcão de um bar, olhou os carros na rua e soube ser
este
o último dia de sua vida. Olhou para baixo, pagou a conta e saiu.


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O olhar se transforma em lágrima.
A alegria, em luto.
Um instante, na vida inteira.


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Alguém morreu aqui.
Aqui não ficou mensagem, discurso, nem foto no jornal.
Restou o silêncio.


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Despertou do pesadelo
e caiu
em outro.


E em outro.


E em outro.


Despertou do desespero
e
   caiu.


Em outro




outro







e caiu:


Nunca amanheceu.


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Era um menino ainda.
Quieto. Triste.


Olhou o corpo do pai.
Frio. Quieto.


Pensou no dia de amanhã.
Triste. Frio.


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Fechou-se em seu silêncio e um olhar
perdido.
Nunca um sorriso, nunca um abraço.


Sua tristeza era sagrada.


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Uma cidade, longe, em silêncio:
Escuta:
Crianças orando a um deus surdo.


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O som de um piano, longe, me consola.
A luz das estrelas,
Um inseto,


Teu retrato pendurado na parede,
Teus discos, teus livros,
Teu relógio azul.


E o murmúrio de crianças orando a um deus surdo.


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O cheiro de carne
podre
penetrava o luar, a lembrança, o resto da vida.


Sentou-se nos degraus da catedral 
e chorou
como uma criança, como se orasse.


Matou uma barata: 
sentiu-se
um deus surdo.


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Morto, mil vezes morto:
A imagem gravada nos olhos de um menino.


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Ao seu redor, mil anjos negros sussurravam
uma canção:
Seu futuro grave, lento, escuro.


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Desatento, olhava mulheres seminuas sob as luzes coloridas.
Amargo,
pensou em sua infância e desejou assassinato.


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Era um cemitério lento como a neblina.
Silêncio.
Uma vela, uma flor, uma lágrima.


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O olhar longe, o andar lento e uma tristeza
sem fim.
O enterro não saía de sua memória.


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Móveis empoeirados, roupas espalhadas pelo chão,
um corpo sangra no sofá.
A vitrola toca Bauhaus; a lâmpada, longe, balança.


Parado na porta, ele contempla o instante estranho,
a hora da morte,
como se fosse a sua.


A mente, longe, balança.
Deja vu:
Crianças orando a um deus morto.


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Quando era criança, pensava que as estrelas cantavam.
Um dia, soube o que era a morte.
O olhar perdido no céu: silêncio.


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Mulheres nuas sob luzes coloridas, música
martelando
imaginários assassinatos e um machado dourado


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Meu deus, ele sussurra,
o sangue escorre
e a vida.


deus são os olhos de seu filho
contemplando espantado
e quieto.


deus é seu coração batendo forte
puro desespero 
e dor.


Fechou os olhos de frio,
desejou um copo d'água
e silêncio.


Meu deus, mas seus lábios não se movem mais.
As luzes se apagam 
e a vida.


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Olhou para trás:
pegadas desfazendo-se ao vento
e alguma saudade.


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O som grave, lento, de seu lamento
súbito, cessou.
A morte exige silêncio.


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Vento arrastando folhas, um pássaro, crianças correndo longe,
Nostalgia, saudade.
A foto em teu túmulo me contempla.


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A vida, que até então chamava-se alegria,
transformou-se de repente em torpor.


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Levou uma vida torpe,
entorpecida,
entre anjos negros, tristes, caídos.


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Fotografia.
Viagem.
Alguma poesia.


Qual o motor da tua alma?


Silêncio. 
O olhar perdido.
Saudade.


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- Isabela! Isabela! - gritou.
Mas Isabela estava morta.


A pele pálida de frio, o rosto sereno, um quase-sorriso enigmático. Isabela estava morta.


Os dias nítidos de inverno. As noites quentes de um verão feliz. Viagens. Festas. Amigos. Nada mais. Isabela estava morta.


O dia em que se conheceram. O dia em que se beijaram. O dia em que se casaram. As memórias eram vivas. Mas Isabela estava morta. 


- Isabela! - gritou mais uma vez.


Depois, ficou em silêncio e chorou.


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Estes olhos viram o teu corpo frio num caixão. Estes olhos viram teu caixão ser baixado ao túmulo e uma colher de pedreiro fechá-lo com cimento. Estes olhos choraram incontáveis lágrimas nos anos que passaram.


Estes olhos correram o mundo, levando essa melancolia, essa tristeza: as vitórias eram alegrias contidas, as derrotas eram um silêncio cósmico.


Estes olhos visitaram paisagens exóticas, cidades inquietas, que talvez os teus olhos tenham visto também, mas nunca me disseste.


A foto em teu túmulo me contempla: teus olhos, meus olhos, distantes no tempo e na vida.


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A estrada escura, a hora estranha, uma estrela
e um pensamento bizarro:
deus morreu nestes pedaços de metal retorcido e vidro quebrado.


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deus morreu nesta estrada escura e quieta,
em teus olhos espantados
e teu rosto sangrando.


deus morreu quando teu relógio parou,
o vidro quebrado,
silêncio.


deus morreu quando toquei tua pele fria e pálida,
o cheiro das flores no caixão,
um raio de sol.


deus morreu quando caiu a noite
e não escutei o barulho do carro
nem tua voz.


O som de um piano, longe, me consola:
me distrai da tua ausência
e a de deus.